Algumas Histórias

BRONZE

Ainda estava escuro e o gado já deixava o curral para ir ao pasto. Malhada não acompanhava o rebanho. Estava prenha, em dias de dar cria, e quase não podia andar.
A barriga inflada como um balão deixava as malhas ainda maiores e os peitos estavam inchados de leite. Malhada era uma boa vaca leiteira, mas era muito brava e ninguém se arriscava a chegar perto de seus chifres pontiagudos, uma arma letal. Ninguém facilitava. Sentenciado à morte estaria quem desse bobeira ou fizesse qualquer brincadeira com ela. Malhada estava sempre quieta, ruminando e babando, até que ficou prenha e a raiva tomou conta dela. O vaqueiro, a certa distância e com o ferrão, tentava afastá-la para que ele pudesse entrar no curral.
Na ordenha o leite saía farto; difícil era fazer Malhada entrar no curral para colocar-lhe a peia. Em dias de desprenhar, Malhada sempre ficava prostrada. Parecia gerar uma pedra, tamanho o seu desânimo. Às vezes olhava para as outras vacas pastando e até ameaçava acompanhá-las, mas o desânimo não permitia. “A anemia montou nela”, comentava o vaqueiro.
Assim, os dias foram passando e Malhada recebia o capim picado e o sal ali mesmo, no cocho do curral. Aquela não era a primeira cria de Malhada e ela sempre compensava os cuidados com bezerros fortes, grandes e robustos, que se tornavam bois cobiçados por ali.
Certa manhã, o vaqueiro encontrou Malhada deitada, estava prostrada, nem se mexia. Alguma coisa incomodava-a, forçando-a a se movimentar. A experiência do vaqueiro garantiu a suspeita: o filhote de Malhada nasceria naquele dia.
De fato, em pouco tempo nasceu um bezerro valente e forte. Ele saiu sem muito esforço, deslizando e caindo no chão, em meio ao capim seco e o estrume.
Desde o primeiro dia o vaqueiro estranhou o bezerro. A cor e as insistentes cabeçadas justificaram o nome: batizaram-no Bronze. Em pouco tempo ele ficou conhecido, devido à sua valentia, robustez e violência. Não entrava estranho no curral sem antes verificar onde estava o Bronze.
O bezerro cresceu rápido e também a sua fama. Não foram poucos os que tiveram que sair a galope, quando tentavam atravessar o pasto pela picada. Contavam que dois meeiros ficaram presos na copa de uma mangueira, escondidos do boi, que insistiu em tirar um cochilo ao pé da árvore e só permitiu que eles descessem quando, ao anoitecer, retornou ao curral.
Depois que Bronze nasceu, roubar fruta no pomar não era mais possível. Houve até quem se viu com a roupa rasgada pelas pontas dos chifres, ao passar por debaixo da cerca de arame farpado. Bronze defendia o seu território e não permitia qualquer invasão. Os ladrões se foram, mas deixaram as frutas esparramadas pelo chão e pedaços das roupas nas farpas do arame.
Não era fácil lidar com o Bronze. Ninguém se atrevia a amansá-lo e tampouco a se aproximar dele. Melhor mesmo deixar que ele crescesse ao acaso, sem muitos mimos, alegava os vaqueiros.
Não se sabia por que ele era bravo daquele jeito e muito menos de quem herdara toda aquela violência. Verdade que Malhada não era mansa, mas Bronze não puxara dela tamanha braveza, dizia o vaqueiro.
Ninguém ousava desafiar aquela fera que não reconhecia nem o próprio vaqueiro. Era melhor ceder aos caprichos do Bronze e deixá-lo pra lá, concluía o vaqueiro, desacoroçoado de enfrentar aquele boi.
Na época de bater o pasto, era preciso passar os animais para o pasto da outra fazenda. Mas, como atravessar o Bronze no arraial sem causar danos ou acidentes? Só havia uma alternativa: o vaqueiro ia à frente, conclamava a todos a trancar as portas e as janelas e proteger as crianças. Ninguém deveria ir à rua e nem de brincadeira ou por curiosidade poderia se aproximar de Bronze.
E lá ia ele, no meio do gado, bufando, atacando a cabeçadas os outros bois.
Bronze reinava. Crescia imponente. Era respeitado. Ninguém facilitava com ele. Pensava-se muito antes de enfrentá-lo.
Bronze era o orgulho da terra, um sucesso na Fazenda das Palmeiras. Bronze era poesia, comentado em todos os cantos, contado em causos, cantado em versos. Era mencionado nos repentes e nas poesias também. Nos versos de amor, era a comparação do macho. Até os meninos nascidos naquela época recebiam a alcunha de Bronzinho, como referência de macho.
Bravo como Bronze! Feroz! Forte! Dominador!
Bronze tornou-se referência. Muitas vacas foram levadas à fazenda para ficarem prenhas dele, pois, um filhote de Bronze valia muito, valorizava o gado, diziam os fazendeiros.
Bronze teve muitos filhos, mas nenhum se comparou a ele. Era motivo de orgulho ter um descendente seu na fazenda. Aquele boi, de pêlo bronzeado, era motivo de comentários, temor, respeito, referência e reverência.
Ninguém entrava no curral ou no pasto quando ele estava por perto, não ousavam desafiá-lo. Onde estava o Bronze, ninguém se aproximava, quando ele passava, todos se escondiam. Aquelas terras tiveram um guardião; aquele domínio possuiu uma imagem; a sua força, violência e robustez foram contadas e cantadas.
Os versos falavam dele. As cantigas também. O repente não o ignorou. Ser forte como um touro. Robusto como um boi. Corado como Bronze, declamavam.
Vó Nina contava que uma mulher, que não conhecia a braveza daquele boi, atravessava o pasto com uma criança de colo e três agarradas à barra da saia. De longe, Bronze percebeu a invasão e investiu contra os estranhos.
Correr para onde? As crianças não chegariam à outra margem e passariam ilesas a cerca de arame, sem antes serem alcançadas. Não restava outra saída, senão, morrerem ali mesmo, no meio do pasto, rasgados pelos chifres daquele animal. Sem saber o que fazer e em desespero, a mulher decide se entregar. Ajoelha no meio do pasto, cercada pelo capim, segura o pequeno de colo e se abraça aos demais. Protege-os inutilmente. O animal investe contra aquelas pobres e indefesas vidas. O ataque seria certeiro.
Cabeça baixa, chifres apontados para frente. Seria uma cabeçada só e não sobraria vivo. A mulher nem olha. Pede a proteção divina e entrega suas vidas a Deus, quem poderia deter aquela fera e salvá-los.
O tropel do boi era ouvido cada vez mais perto. Ela esperava pelo ataque. As crianças obedeciam-na e escondiam o rosto, agarradas à mãe.
Mas os passos cessam. Ninguém chegou. Bronze não atacou. Para onde ele foi? O que aconteceu? Pensando que o boi tivesse caído, a mulher abre os olhos, levanta o rosto lentamente e ousa olhar. Bronze está rodeando o pequeno e indefeso grupo, olha por um instante e simplesmente volta.
Ninguém explicou o ocorrido. Por que não atacou? O que aquela mulher fez para que Bronze desistisse? Ela se põe de pé e auxilia os filhos. Eles foram os únicos a atravessarem o pasto e não foram atacados por Bronze, contavam.
Explicar? Ninguém sabia. Ninguém ousava encontrar uma justificativa para as artimanhas e caprichos daquela criatura. Preferiam acreditar que um milagre aconteceu ali.
O reinado de Bronze durou o tempo suficiente para marcar a história da Fazenda das Palmeiras e ele ser lembrado sempre como um boi que não era somente bravo, robusto e agressivo.
Bronze foi, por muito tempo, assunto nas conversas de botequim, alpendres, terreiros, currais e tema das cantorias de viola.
Bronze fez diferença até que o tempo roubou-lhe as forças e o fôlego de vida lhe faltou.
Bronze não existe mais, mas a carcaça de sua cabeça foi hasteada no esteio do curral, para onde os olhares se convergem, para que ele nunca fosse esquecido. Ele sempre foi lembrado e reverenciado como Bronze e não apenas como um boi.

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2 comentários

  1. Adirson, sou a Maria Luciene. Você irá falar sobre mim, pela sandra , sua cunhada.Também estou iniciando minha carreira de escritora.Dei uma passadinha rápida em seu blog. achei-o bastante interessante e prometo visitá-lo com mais tempo ao final da semana.
    Um abraço!

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  2. Desculpe-me a falha: ...você irá ouvir falar sobre mim...

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