MOCORONGO
O dia começava cedo. Lá fora ainda estava escuro. No inverno a cerração baixa embaçava a vista e não se via nem o que estava mais próximo. Mas era hora de levantar, o primeiro galo havia cantado há algum tempo e os demais o acompanharam. A lenha queimava no fogão e clareava a cozinha, enquanto na chaleira a água fervia. O coador de pano fora colocado no aro do mancebo pendurado na parede. A mão girava a manivela do moinho e o pó, moído, era colocado no coador. A água tingida escorria e caía no bule, exalando o cheiro do café. Um gole e já era hora de sair.
O almoço ia no pequeno caldeirão, dentro do embornal, junto com a merenda. Abria a porta, olhava para um lado e outro, fechava-a novamente e, com passos firmes e decididos, enfrentava a cerração e aquele ventinho gelado. Era madrugada e no céu ainda havia estrelas. Ninguém era visto na rua, ainda dormiam.
Um assobio estridente cortou a madrugada e quebrou o silêncio. Marchas cívicas se misturavam às melodias que eram executadas pelas ruas silenciosas e desertas. Passos rápidos e sintonizados com o ritmo das marchas assobiadas.
O assobio matutino era a identidade daquele homem e, quando ouviam-no, sabiam que ele passava. O tempo passou e o assobio fora incorporado à rotina da cidade e mesmo quando ele não estava bem, aquele som era esperado. Todos os dias lá vinha ele, assobiando e andando a largos passos, como se tivesse uma pressa infinita.
Mas não era só o assobio peculiar àquele homem. Mocorongo era seu jargão e podia significar qualquer pessoa ou qualquer coisa, concordando com o que ele quisesse alcunhar. Tudo e todos podiam ser um mocorongo, mocoronguinho ou até mesmo um mocorongão. Difícil era saber o que ele queria dizer quando chamava alguém de mocorongo. E foi ele mesmo quem interpretou o apelido:
– Mocorongo, ‘ocê é um bobo! Bobo e feio!
Mocorongo não era ser bobo, nem ser feio, mas aquele homem preferia simplificar tudo, não buscar significados específicos e não se preocupar com o que poderia ou não ser um mocorongo. O feitiço do eufemismo virou contra o feiticeiro e mocorongo passou a ser o seu próprio apelido.
Mocorongo era espalhafatoso, andava pelas ruas falando alto e quando a conversa ficava mais amistosa, ele esfregava o rosto com as mãos e uma gargalhada homérica ressoava. Ao ouvi-la, já sabiam: o Mocorongo estava passando na rua.
Mocorongo não passava despercebido, quando era visto, havia sempre alguma coisa para falar, assunto nunca lhe faltava.
O tempo passou e levou a motivação e encanto do assobio e das gargalhadas do Mocorongo. Ele andava triste, cabisbaixo e já não estava tão alegre como antes. Perdera sua companheira e a solidão lhe interrompeu o repertório. Mocorongo estava em silêncio, quieto, enlutado. A companheira de algumas décadas parece ter levado consigo o assobio e as razões das gargalhadas de Mocorongo.
Aquela ausência arrancou daquele lugar o assobio, as gargalhadas e o próprio Mocorongo, que partiu para uma terra não tão distante e enxertou-se em outros troncos. Fixaria suas raízes em outro lugar, onde pôde, outra vez, assobiar e gargalhar como antes.
O repertório de Mocorongo parecia interminável e, naquele lugar, ele logo começou a marcar sua presença e gravar o som de suas gargalhadas nos ouvidos daquele povo, também alcunhado de mocorongo.
A alegria do assobio e a festa das gargalhadas do Mocorongo agora eram em outro lugar. Para trás ficou a terra que Mocorongo pisou por pouco mais que sete décadas.
O tempo outra vez foi cruel e chegou o dia que Mocorongo viu executado todo o seu repertório, soltou incontáveis gargalhadas e muita gente já havia sentido, com ele, a sua alegria. Mocorongo cumprira sua missão.
Mocorongo, nem é um bobo, nem um feio, apenas era alegre em todas as circunstâncias.
Mocorongo não tinha mais o que fazer e deu por concluída a sua missão. Decidiu apelidar outras gentes, gargalhar com outras platéias, alegrar os moradores de outras terras, brilhar em outros palcos.
Mocorongo não escolheria deixar este lugar, mas, como nunca se esquivou de um compromisso, aceitou o desafio e depois de uma carreira de vida de mais de setenta e um anos, foi assobiar com o vento, para que o mundo todo pudesse ouvir e sentir a força de seus pulmões, que no último minuto fê-lo calar-se para sempre. Seu corpo foi depositado no jazigo, marcado por estacas fincadas ao lado da companheira, no dia em que ela foi naquele chão enterrada.
Já não é mais possível em nenhuma terra ver o Mocorongo passar. Ouvir o eco de seu assobio e suas gargalhadas homéricas não é mais permitido. Corações ficaram tristes e já não podem alegrar-se com ele.
Nas madrugadas não se ouve mais o som daquele assobio nem aquelas gargalhadas. Ficaram as obras de suas mãos, que perpetuar-se-ão na memória de muitos e registradas nas páginas encardidas de uma história, a história de vida do Mocorongo.
Mocorongo tornou-se uma estrela, brilhante por natureza, iluminando o céu, junto à companheira que, assim como ele, foi fiel à sua missão.
Saudades de Mocorongo é lembrar de suas gargalhadas, é acordar pela madrugada imaginando que seu assobio ainda toca marchinhas e canções da terra. É abrir-se num largo sorriso ao lembrar que ainda estão vivas as lembranças daquele que ousou assobiar, gargalhar e encantar em todo canto, onde ele pôs a planta de seus pés. É ter certeza que o tempo faz esquecer, pode apagar, mas nunca destruir as obras que Mocorongo realizou enquanto esteve neste lugar.
Mocorongo, ‘ocê é um bobo! Bobo e feio!
É, Mocorongo, você é a estrela que ainda ousa brilhar, iluminar e encantar nossa vida.
O almoço ia no pequeno caldeirão, dentro do embornal, junto com a merenda. Abria a porta, olhava para um lado e outro, fechava-a novamente e, com passos firmes e decididos, enfrentava a cerração e aquele ventinho gelado. Era madrugada e no céu ainda havia estrelas. Ninguém era visto na rua, ainda dormiam.
Um assobio estridente cortou a madrugada e quebrou o silêncio. Marchas cívicas se misturavam às melodias que eram executadas pelas ruas silenciosas e desertas. Passos rápidos e sintonizados com o ritmo das marchas assobiadas.
O assobio matutino era a identidade daquele homem e, quando ouviam-no, sabiam que ele passava. O tempo passou e o assobio fora incorporado à rotina da cidade e mesmo quando ele não estava bem, aquele som era esperado. Todos os dias lá vinha ele, assobiando e andando a largos passos, como se tivesse uma pressa infinita.
Mas não era só o assobio peculiar àquele homem. Mocorongo era seu jargão e podia significar qualquer pessoa ou qualquer coisa, concordando com o que ele quisesse alcunhar. Tudo e todos podiam ser um mocorongo, mocoronguinho ou até mesmo um mocorongão. Difícil era saber o que ele queria dizer quando chamava alguém de mocorongo. E foi ele mesmo quem interpretou o apelido:
– Mocorongo, ‘ocê é um bobo! Bobo e feio!
Mocorongo não era ser bobo, nem ser feio, mas aquele homem preferia simplificar tudo, não buscar significados específicos e não se preocupar com o que poderia ou não ser um mocorongo. O feitiço do eufemismo virou contra o feiticeiro e mocorongo passou a ser o seu próprio apelido.
Mocorongo era espalhafatoso, andava pelas ruas falando alto e quando a conversa ficava mais amistosa, ele esfregava o rosto com as mãos e uma gargalhada homérica ressoava. Ao ouvi-la, já sabiam: o Mocorongo estava passando na rua.
Mocorongo não passava despercebido, quando era visto, havia sempre alguma coisa para falar, assunto nunca lhe faltava.
O tempo passou e levou a motivação e encanto do assobio e das gargalhadas do Mocorongo. Ele andava triste, cabisbaixo e já não estava tão alegre como antes. Perdera sua companheira e a solidão lhe interrompeu o repertório. Mocorongo estava em silêncio, quieto, enlutado. A companheira de algumas décadas parece ter levado consigo o assobio e as razões das gargalhadas de Mocorongo.
Aquela ausência arrancou daquele lugar o assobio, as gargalhadas e o próprio Mocorongo, que partiu para uma terra não tão distante e enxertou-se em outros troncos. Fixaria suas raízes em outro lugar, onde pôde, outra vez, assobiar e gargalhar como antes.
O repertório de Mocorongo parecia interminável e, naquele lugar, ele logo começou a marcar sua presença e gravar o som de suas gargalhadas nos ouvidos daquele povo, também alcunhado de mocorongo.
A alegria do assobio e a festa das gargalhadas do Mocorongo agora eram em outro lugar. Para trás ficou a terra que Mocorongo pisou por pouco mais que sete décadas.
O tempo outra vez foi cruel e chegou o dia que Mocorongo viu executado todo o seu repertório, soltou incontáveis gargalhadas e muita gente já havia sentido, com ele, a sua alegria. Mocorongo cumprira sua missão.
Mocorongo, nem é um bobo, nem um feio, apenas era alegre em todas as circunstâncias.
Mocorongo não tinha mais o que fazer e deu por concluída a sua missão. Decidiu apelidar outras gentes, gargalhar com outras platéias, alegrar os moradores de outras terras, brilhar em outros palcos.
Mocorongo não escolheria deixar este lugar, mas, como nunca se esquivou de um compromisso, aceitou o desafio e depois de uma carreira de vida de mais de setenta e um anos, foi assobiar com o vento, para que o mundo todo pudesse ouvir e sentir a força de seus pulmões, que no último minuto fê-lo calar-se para sempre. Seu corpo foi depositado no jazigo, marcado por estacas fincadas ao lado da companheira, no dia em que ela foi naquele chão enterrada.
Já não é mais possível em nenhuma terra ver o Mocorongo passar. Ouvir o eco de seu assobio e suas gargalhadas homéricas não é mais permitido. Corações ficaram tristes e já não podem alegrar-se com ele.
Nas madrugadas não se ouve mais o som daquele assobio nem aquelas gargalhadas. Ficaram as obras de suas mãos, que perpetuar-se-ão na memória de muitos e registradas nas páginas encardidas de uma história, a história de vida do Mocorongo.
Mocorongo tornou-se uma estrela, brilhante por natureza, iluminando o céu, junto à companheira que, assim como ele, foi fiel à sua missão.
Saudades de Mocorongo é lembrar de suas gargalhadas, é acordar pela madrugada imaginando que seu assobio ainda toca marchinhas e canções da terra. É abrir-se num largo sorriso ao lembrar que ainda estão vivas as lembranças daquele que ousou assobiar, gargalhar e encantar em todo canto, onde ele pôs a planta de seus pés. É ter certeza que o tempo faz esquecer, pode apagar, mas nunca destruir as obras que Mocorongo realizou enquanto esteve neste lugar.
Mocorongo, ‘ocê é um bobo! Bobo e feio!
É, Mocorongo, você é a estrela que ainda ousa brilhar, iluminar e encantar nossa vida.
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