Franzino e miúdo, Miroveu era um homem muito esperto, agitado e trabalhador. Ele vivia filosofando e quando ia a um velório, saía revoltado:
– Não sei porque todo mundo que morre vira santo! – concluía.
Miroveu ficava injuriado com o choro daquela gente, que passava a vida infernizando o finado e criando todo tipo de confusão. Reclamavam, acusavam, negavam e quando viam o defunto estirado no caixão, imóvel, surdo, cego e mudo, despejavam elogios, falavam com entusiasmo e relembravam cenas em que o sujeito era sempre o protagonista. Na maioria das vezes, sem defeito, um herói, um santo, quase um deus.
A ladainha de todos os velórios criava uma revolta danada em Miroveu, que jurou deixar uma lista de nomes, os quais considerava não dignos de chorar a sua morte e muito menos de tecer elogios ou inventar heróicos fatos, supostamente vividos por ele. A mulher seria a primeira, o cunhado, o segundo, e a lista parecia ser bem longa.
Ninguém dava crédito ao que dizia Miroveu. Não o viam escrevendo nada e uma coisa daquelas seria mais uma de suas bobiças. Com o tempo, o próprio Miroveu percebeu que estava fazendo papel de bobo da corte, pois todos riam de seus comentários a respeito dos velórios e da hipocrisia dos vivos. Mas ele não abandonou a ideia de deixar a tal lista com o nome das pessoas dispensadas de chorar ou reclamar a sua partida desta vida para a outra, o que muitos pensavam ser o melhor a acontecer.
O tempo passou e na cidade ninguém parecia lembrar o que Miroveu falara e, quando muito doente e quase morrendo, quando foram chamar o padre para a extrema unção.
O sacerdote entrou no quarto onde jazia o moribundo, debaixo dos cobertores. Sentou-se ao lado do enfermo e começou o trabalho, colocando uma vela acesa nas mãos cruzadas ao peito do candidato a defunto.
Quando ia começar, de fato, a encomenda da alma do pobre diabo, ele abriu os olhos e perguntou:
– Padre, posso fazer um último pedido?
O padre assustou-se. Mas Miroveu ainda não morrera, indagou-se o padre.
– Último? Sim, meu filho, peça! – disse o padre, gaguejando.
– O senhor promete que me atenderão?
– Claro, filho, pode falar.
Miroveu deu um pigarro, firmou nas mãos a vela, para não queimar os cobertores, e disse:
– Sei que vou morrer, padre, e já sinto a morte rondar-me, mas sinto-me no direito de manifestar um último desejo.
O padre começou a ficar curioso e impaciente, ansioso por resolver logo a situação daquele homem, encomendar sua alma e despachá-lo para o céu ou para o inferno, ou onde aprouvesse a Deus.
– Então fale, filho, prometo atendê-lo! – disse, por fim, o padre.
Miroveu pensou e decidiu falar:
– Padre, eu quero que o senhor pegue no baú azul, em cima da caixa de roupa, no meu quarto e da Joanita, uma folha escrita e a coloque bem aberta sobre o meu peito, e que eu seja enterrado com ela bem exposta.
O padre não entendeu bem, mas prometeu cumprir o desejo do moribundo, mesmo não sabendo do que se tratava a tal escrita. Logo depois, de fato, Miroveu morreu, fechando os olhos e tendo a alma encomendada a Deus, que o receberia, se assim fosse o desejo do Altíssimo.
O padre saiu do quarto curioso com o pedido, mas como havia prometido ao falecido, cumpriria o seu desejo. Ficou de voltar em seguida, quando o corpo já estivesse preparado, assim, satisfaria a vontade do morto.
Na manhã seguinte, ainda estava escuro quando o padre chegou à casa de Miroveu. Muitos amigos, parentes e curiosos, todos querendo prestar a última homenagem ao defunto. Cada um se ajeitou como pode para dar conta de passar a noite ali, como último sacrifício por Miroveu.
O padre entrou, cumprimentou a todos e foi procurar Joanita, a recém-viúva. Ela estava chorando no quarto, quando o padre entrou perguntando pelo tal baú azul que, como dissera o homem, estava sobre uma mesa, em um canto. Não foi difícil abri-lo e encontrar a mensagem de Miroveu, identificada como A Lista de Miroveu, escrita a lápis, num papel para embrulhos.
O padre abriu a folha de papel e, mesmo não entendendo bem, dirigiu-se à sala e colocou-a sobre o peito de Miroveu, que continuava imóvel e indiferente a tudo o que ocorria ali.
Tão logo se afastou do caixão, vários curiosos aproximaram para ver do que se tratava e, qual foi a surpresa ao verem que o ordinário cumprira a promessa. À medida que cada um identificava o seu nome na lista de Miroveu, ficavam revoltados, tinham ímpetos de retirar aquele papel e rasgá-lo, mas o sacerdote havia alertado que aquele era o último desejo do morto e que havia prometido enterrá-lo com aquela lista no peito.
Joanita foi a primeira a se aproximar chorando, mas logo enxugou os olhos, ao ser lembrada por alguém que o seu nome era o primeiro da lista. A partir daquele momento, ninguém ousava chorar, inventar histórias, elogiar o defunto ou tecer comentários. Temiam o título de hipócritas, falsos ou demasiadamente mentirosos, e quem não estava na lista, também não ousava arriscar, temendo ser igualmente classificado. Era um olhar na lista e outro nos presentes, para identificar os prováveis inimigos de Miroveu ou os “amigos da onça”.
Assim, o velório de Miroveu transcorreu sem choro, sem histeria, sem fatos mirabolantes ou comentários sobre o que ele fez ou deixou de fazer em vida. Até mesmo o padre acanhou-se com o que dizer na cerimônia fúnebre e resolveu ser breve, detendo-se apenas nos poucos textos bíblicos que havia selecionado, mandando logo o defunto à cidade dos pés-juntos.
Miroveu foi enterrado sem os comentários, elogios e as fantasias dos vivos, que insistem sempre em isentar os mortos de suas culpas e defeitos, anistiando-os de seus delitos e pecados, como a barganhar uma vaga no repouso eterno, mesmo não sendo dignos de tamanha graça.
– É, a morte surpreende até mesmo aos próprios mortos – disse o padre, tão logo o corpo saiu da igreja, aos repiques do sino.
MOMENTO
É tarde,
Crepúsculo!
Meus olhos procuram alguma razão para explicar o que me queima o peito,
Meu coração busca uma resposta
O que está acontecendo comigo?
Onde está a tristeza que insistia ferir-me a alma?
Por onde anda a agonia que certamente dizimaria meu ser?
O que foi feito daquele sentimento ruim, aquele desejo de morte?
O que faria de mim?
Onde pensei enterrar meu ser?
De onde me surgiu o fio, quase invisível, ao qual me agarrei?
De onde brotou a ressurreição?
Qual a origem do meu renascimento?
Ver de novo a vida,
Verde, nova folha!
Sorrir sem razão,
Sussurrar por emoção,
Salivar de prazer,
Degustar o desejo.
Ah!, a vida abre-me novamente,
O horizonte ressurge na rotura do véu,
O invólucro se rompe, é possível viver.
A liberdade eleva-me
Flutuo, leve, elevado
Por quanto tempo não, sei
Será eterno? Não julgo.
Se terminar agora, valeu a pena.
Se sou feliz?
Não posso afirmar,
Apenas me realizo neste momento.
Não, desliza
Desce devagar, sem pressa
Deixa sua marca
Um vestígio
Escorre contornando obstáculos
Às vezes lentamente
Outras, depressa
Levada pela gravidade
Num longo percurso
Que lhe diminui a força, pois,
Uma parte ficou para trás
As forças são ínfimas,
A gota desce
Mas, não sabe seu destino
Ela se dissipa
Simplesmente...