PRÓDIGO
O ônibus parou, a porta foi aberta. Gersino desceu e tocou aquele solo novamente, após quase duas décadas. Hesitou por um instante e observou o ônibus desaparecer na curva da estrada, em meio a uma nuvem de poeira.
Gersino olhou para um lado e para o outro e acompanhou com o olhar os contornos da estrada que daria à casa dos pais. Por um momento sentiu como se nunca saíra dali e, a sensação da presença dos pais e dos irmãos trouxe à sua memória recordações de sua infância, adolescência e até mesmo fatos que lembravam o dia que dali partira.
Abriu a mochila e tirou um chapéu amassado e os óculos escuros. Ajeitou a mochila nas costas e começou a caminhar. Não adiantaria andar rápido, era longe e se cansaria. Haveria de andar bastante até chegar à sua casa, pensou.
A estrada era estreita, margeada pela lavoura de café que dava uma impressão sombria, escondendo alguma surpresa pelos becos afora.
Gersino andava e observava o verniz do sapato sendo colorido pelo amarelo da poeira. A cada passo, aumentavam-lhe as lembranças de sua vida pregressa.
Na primeira curva, parou sobre a ponte de tábuas e observou por instantes o leito do rio. No espelho d’água se formavam imagens das árvores e das nuvens que se movimentavam lentamente. Gersino não pôde deixar de esboçar um sorriso ao lembrar-se do dia em que o pai fora chamado às pressas para socorrer um meeiro que havia caído naquele rio. Também pudera, andava sempre embriagado e a estreita ponte não oferecia proteção alguma. Após a queda brusca e inesperada, o meeiro jurou não beber, mas o fato caiu no esquecimento e ele reapareceu embriagado.
Gersino continuou a andar e logo à frente parou novamente, em frente à cruz do falecido Antônio Coita. Gersino observou aquele pedaço de madeira envolvido em papel de seda, uma lata enferrujada servia de castiçal e algumas flores secas ainda permaneciam ali, ao pé da cruz. Contavam que Antônio Coita fora assassinado pelo próprio genro, ao negar a divisão das terras enquanto vivo. Que o fizessem após a sua morte, alegou. E para dar um impulso à sorte, o genro assassinou o sogro e foi gozar de sua herança longe dali, numa cela de cadeia.
Gersino andou mais um bom trecho e deparou com a encruzilhada que levava à casa do padrinho de Lourenço, seu irmão mais velho. O compadre Hamilton era muito querido do pai e a consideração que tinham um pelo outro era grande. Lourenço ganhou um padrinho cem por cento, como sempre dizia o pai.
Um barulho chamou a atenção do caminhante após andar outro trecho. Sorriu. Era a bica onde costumavam beber água sempre que passavam por ali. A água escorria e alguém teve o zelo de colocar uma bica de ambaíba e cavar um poço para que os animais também a bebessem. Gersino aproximou-se e viu seu rosto refletido no espelho d’água, ora fixo, ora trêmulo. Jogou a mochila num canto, abaixou-se, tirou o chapéu e os óculos escuros. Molhou as mãos, os braços e o rosto. Fez concha com a palma das mãos e bebeu, outra vez, aquela água.
Ficou observando-a cair, ouvindo o barulho que fazia ao escorrer por entre as pedras e gravetos. Lembrou-se do dia que voltavam da missa e, ao pararem ali para beber água, ele empurrou Catarina, sua irmã, que caiu na poça de lama, sujando a roupa nova que usava pela primeira vez. Sorriu ao lembrar, também, da surra que levara ao ser apanhado por Lourenço, que o trouxe à presença da mãe para dar-lhe um corretivo.
Gersino pegou a mochila, pôs novamente os óculos e o chapéu e recomeçou a caminhada. Já andara bastante. A lavoura havia ficado para trás e o sol já não castigava tanto. O pasto, de um lado e outro, a estrada margeada por uma cerca de arame farpado e algumas árvores. Tudo parecia como havia deixado há quase vinte anos, quando saiu da casa dos pais para viver na cidade, fazer a própria vida. Quanta ilusão!
Gersino caminha e acompanha com o olhar afoito cada detalhe. Lembrou-se de quando o pai comunicou que a terra que recebera por herança se resumia somente no local onde fora construída a casa onde moravam e que a vida na roça não seria tão próspera quanto antes. Os filhos decidiram escolher o próprio caminho. Lourenço e Catarina se casaram ainda jovens e se mudaram para outra localidade.
Gersino ainda não completara dezessete anos quando receberam uma visita que deu o pontapé na sua decisão de também deixar a vida na roça. Um homem que andava por aquelas bandas tirando retrato e vendendo quinquilharias convenceu-o de que a cidade ofereceria melhores condições de vida e prosperidade e prometeu ajudá-lo.
Ele ficou empolgado com a possibilidade de fazer a vida na cidade e foi embora, conhecendo o que era o mundo. Ficou como prisioneiro daquele homem, que não permitia que ele saísse, privando-o de liberdade, ameaçando-o com uma suposta responsabilidade lhe outorgada pelo seu pai. O homem obrigava-o a realizar serviços para saldar a dívida da viagem e da hospedagem, uma conta que nunca era quitada. Gersino levou tempo para se ver livre e, somente após aquele tempo, ele teve condições de retornar à casa dos pais, aproveitando um momento de distração do seu algoz e escapando pela janela. Nem sabia por onde andavam seus irmãos. Dos pais não teve mais notícias, mas agora estava de volta, disposto a refazer a sua vida e viver junto a eles, o que não teve oportunidade de fazer até àquela data. Jurou para si mesmo nunca mais abandoná-los.
Sonhava com o momento que chegaria à casa dos pais e seria recebido por eles, poder jogar-se aos seus braços, pedir perdão pela ambição e a cobiça e poder sentir o calor, o carinho, a segurança e o amor que somente a casa dos pais proporciona, pensou Gersino.
Seus passos no chão batido eram firmes, decididos e cheios de saudades. Diria à mãe e ao pai o quanto os amava. Como era bom poder voltar!
A certa distância, Gersino avistou a última curva e logo estaria em casa.
Aquela curva também testemunhara muitas das aventuras de Gersino, dos irmãos e dos primos que vinham visitá-los. Lembrou-se de quando vinham encontrar com o avô, que chegava no carro de bois, trazendo a colheita da lavoura. Quando ele voltava, os netos amontoavam-se no carro de bois e iam até àquela curva, voltando aos galopes e gritos, sendo recebidos pela mãe, que os esperava no alpendre. Dali também ela gritava por eles, à hora do almoço ou para tomarem banho. Era uma festa correr o dia todo, sem limite para as brincadeiras.
Bom mesmo era quando os primos apareciam. A casa ficava cheia e não havia uma árvore que ficava livre. Subiam em todas e a barulheira era tamanha que quando eles iam embora, o pai reclamava da imensidão da casa e do silêncio. A casa ficara estava surda, dizia ele.
Gersino passou pela curva e entrou numa reta escura, sombreada por árvores de frondosas copas de um lado e de outro, que impediam que os raios do sol penetrassem. Sentiam medo sempre que passavam ali à noite, quando voltavam da rua, lembrou.
Aquele último trecho que daria à casa dos pais deu mais força ao rapaz, que se pôs a andar mais depressa, a passos largos. Em pouco tempo avistou a casa, ainda distante. Era um casarão não muito grande, antigo, com o reboco soltando em vários pontos e o mato brotando no telhado denunciavam o tempo que não era reformada. As janelas e as portas estavam fechadas. Ninguém no quintal. Nenhuma galinha, cabrito ou outro animal andava pelo terreiro. Apenas um cão latiu, escondido debaixo de uma laranjeira, distante da casa.
Gersino observou o terreiro onde o pai secava o café, amontoava o milho e também eles aprontavam as brincadeiras, correndo de um lado a outro. Parou e veio-lhe à lembrança a casa aberta, um varal no alpendre, cheio de roupas, e eles brincando no terreiro, puxando uma carroça, às gargalhadas.
Ao redor do terreiro, laranjeiras, jabuticabeiras, goiabeiras. Tudo permanecia no mesmo lugar, intacto. Gersino aproximou-se, olhou a casa de frente, circulou e foi para os fundos. Subiu uns degraus de pedra, cobertos de lodo. Ouviu o barulho da água na bica, que continuava a desaguar. Sorriu! Subiu mais um pouco. A porta da cozinha também estava fechada. Foi à bica. Uma bica de bambu levava a água até à porta da cozinha, onde fora colocado o jirau onde as vasilhas eram colocadas para escorrer.
Dentro do caixote de madeira podre, uma panela de ferro e uma colher permaneciam debaixo da bica. A água caía na panela e derramava, desaguando por um rego, se espalhando pelo quintal. Dia e noite, incansavelmente!
Gersino acompanhou com o olhar o curso da água e avistou a corda amarrada num galho da jabuticabeira. A gangorra que o pai fizera, quando ainda eram pequenos, ainda permanecia ali, já apodrecida.
O rapaz retirou os óculos, colocou-os no bolso da camisa, aproximou-se da porta da cozinha. Reconheceu a tira de tecido que a mãe amarrara para puxar a porta quando saíssem. Era um retalho da sobra de um vestido que fizera para Catarina. Tocou levemente o tecido e empurrou a porta, quase adivinhando o que poderia encontrar lá dentro, ou não encontraria nada, nada mais poderia existir ali, pensou.
O silêncio era fúnebre.
Tão logo a porta foi aberta, a cozinha recebeu um facho de luz e Gersino pôde ver a prateleira e os pertences da mãe ainda no mesmo lugar. Algumas panelas na trempe do fogão a lenha, o tições, a peneira e o abano pendurados na parede, um banco de madeira e o tamborete onde dona Adelaide costumava sentar Catarina para lhe pentear os cabelos.
Gersino passou os dedos pela mesa de tábuas e percebeu que há tempo a poeira não era retirada, já estava acumulada.
Ele colocou a mochila sobre a mesa e foi para outro cômodo. O sol entrava pelas frestas do telhado e revela partículas de poeira que giravam no ar.
Ele abre a porta e entra no quarto dos pais. Vai à janela, abre-a e deixa entrar uma brisa leve. Pela janela avistou o forno de barro, construído debaixo da varanda, ao lado da casa, onde a mãe assava broas, biscoitos, leitões e outras iguarias que eles adoravam. Sentia um odor insuportável de sujeira, mofo e poeira. Ele olha a cama, o crucifixo pendurado à cabeceira, a lamparina sobre a cômoda, o guarda-roupa e uma bengala, que o avô usara. Na cama, uma colcha de retalhos e os travesseiros. Uma peça de roupa pendurada em um prego atrás da porta chamou-lhe a atenção. Era a roupa que a mãe usava para dormir. Ali ela pendurava a camisola.
Cada objeto estava vivo em sua memória e seus olhos buscavam cada detalhe, absorvendo tudo o que revia.
Gersino saiu dali e foi para o outro quarto, outro e outro, revendo os móveis e objetos encontrados, abrindo as janelas e deixando que o ar circulasse.
Por último, chegou à sala.
Passou direto e abriu a janela e a porta. Deixou o olhar ganhar o pomar, o pasto e o quintal. Voltou os olhos e sorriu ao ver a foto dos pais pendurada na parede. A mãe sorria. Aquela foto estava bem diferente. A pintura a óleo nunca demonstrava exatamente como as pessoas eram, havia muito exagero, pensou ele.
Gersino olhou a cristaleira com as louças que dona Adelaide guardava para servir às visitas. Agora poderia usá-las, era visita. Sorriu. Servido pela mãe, até numa cuia um mingau vira banquete, pensou.
Os olhos de Gersino se detiveram no assoalho. Uma parte estava diferente, marcada por uma enorme mancha que ele não conhecia. Seus olhos seguiram aquela mancha até encontrarem o banco, onde a mãe sempre costumava deitar.
Com as mãos no rosto, não pôde conter-se. As lágrimas explodiram de seus olhos ao ver a mãe ali deitada. Vestia o vestido de chita que os filhos lhe deram de presente num dia das mães. Estava deitada, na mesma posição, com as fotos dos filhos espalhadas pelo peito.
Os filhos se casaram e foram cuidar da própria vida. O caçula partiu, para também se realizar longe da roça. Os pais ficaram sozinhos, esperando que, de uma hora para outra, um deles retornasse. Inútil espera.
O pai deixa a mãe sozinha, ao partir para atender ao chamado de Deus. A solidão era imensa e os anos foram cruéis com dona Adelaide, não lhe devolvendo os filhos e ainda lhe tomando o marido. Alguns anos de espera foram suficientes para ela sentir o que lhe aconteceria.
Sentira saudades, estava só, queria alguém por perto e as fotos serviram-lhe de consolo. Assim ela partiu para uma vida onde, talvez, a solidão não existisse. Já não percebia nada mais, não ouvia, não via, não chorava nem sentia saudade, nem percebia a presença do filho que ali estava, ao seu lado, para revê-la, poder abraçá-la, disposto a confessar-lhe outra vez o seu amor.
Entretanto, Gersino estava de volta e, após quase duas décadas, ele reencontrou a mãe...
O ônibus parou, a porta foi aberta. Gersino desceu e tocou aquele solo novamente, após quase duas décadas. Hesitou por um instante e observou o ônibus desaparecer na curva da estrada, em meio a uma nuvem de poeira.
Gersino olhou para um lado e para o outro e acompanhou com o olhar os contornos da estrada que daria à casa dos pais. Por um momento sentiu como se nunca saíra dali e, a sensação da presença dos pais e dos irmãos trouxe à sua memória recordações de sua infância, adolescência e até mesmo fatos que lembravam o dia que dali partira.
Abriu a mochila e tirou um chapéu amassado e os óculos escuros. Ajeitou a mochila nas costas e começou a caminhar. Não adiantaria andar rápido, era longe e se cansaria. Haveria de andar bastante até chegar à sua casa, pensou.
A estrada era estreita, margeada pela lavoura de café que dava uma impressão sombria, escondendo alguma surpresa pelos becos afora.
Gersino andava e observava o verniz do sapato sendo colorido pelo amarelo da poeira. A cada passo, aumentavam-lhe as lembranças de sua vida pregressa.
Na primeira curva, parou sobre a ponte de tábuas e observou por instantes o leito do rio. No espelho d’água se formavam imagens das árvores e das nuvens que se movimentavam lentamente. Gersino não pôde deixar de esboçar um sorriso ao lembrar-se do dia em que o pai fora chamado às pressas para socorrer um meeiro que havia caído naquele rio. Também pudera, andava sempre embriagado e a estreita ponte não oferecia proteção alguma. Após a queda brusca e inesperada, o meeiro jurou não beber, mas o fato caiu no esquecimento e ele reapareceu embriagado.
Gersino continuou a andar e logo à frente parou novamente, em frente à cruz do falecido Antônio Coita. Gersino observou aquele pedaço de madeira envolvido em papel de seda, uma lata enferrujada servia de castiçal e algumas flores secas ainda permaneciam ali, ao pé da cruz. Contavam que Antônio Coita fora assassinado pelo próprio genro, ao negar a divisão das terras enquanto vivo. Que o fizessem após a sua morte, alegou. E para dar um impulso à sorte, o genro assassinou o sogro e foi gozar de sua herança longe dali, numa cela de cadeia.
Gersino andou mais um bom trecho e deparou com a encruzilhada que levava à casa do padrinho de Lourenço, seu irmão mais velho. O compadre Hamilton era muito querido do pai e a consideração que tinham um pelo outro era grande. Lourenço ganhou um padrinho cem por cento, como sempre dizia o pai.
Um barulho chamou a atenção do caminhante após andar outro trecho. Sorriu. Era a bica onde costumavam beber água sempre que passavam por ali. A água escorria e alguém teve o zelo de colocar uma bica de ambaíba e cavar um poço para que os animais também a bebessem. Gersino aproximou-se e viu seu rosto refletido no espelho d’água, ora fixo, ora trêmulo. Jogou a mochila num canto, abaixou-se, tirou o chapéu e os óculos escuros. Molhou as mãos, os braços e o rosto. Fez concha com a palma das mãos e bebeu, outra vez, aquela água.
Ficou observando-a cair, ouvindo o barulho que fazia ao escorrer por entre as pedras e gravetos. Lembrou-se do dia que voltavam da missa e, ao pararem ali para beber água, ele empurrou Catarina, sua irmã, que caiu na poça de lama, sujando a roupa nova que usava pela primeira vez. Sorriu ao lembrar, também, da surra que levara ao ser apanhado por Lourenço, que o trouxe à presença da mãe para dar-lhe um corretivo.
Gersino pegou a mochila, pôs novamente os óculos e o chapéu e recomeçou a caminhada. Já andara bastante. A lavoura havia ficado para trás e o sol já não castigava tanto. O pasto, de um lado e outro, a estrada margeada por uma cerca de arame farpado e algumas árvores. Tudo parecia como havia deixado há quase vinte anos, quando saiu da casa dos pais para viver na cidade, fazer a própria vida. Quanta ilusão!
Gersino caminha e acompanha com o olhar afoito cada detalhe. Lembrou-se de quando o pai comunicou que a terra que recebera por herança se resumia somente no local onde fora construída a casa onde moravam e que a vida na roça não seria tão próspera quanto antes. Os filhos decidiram escolher o próprio caminho. Lourenço e Catarina se casaram ainda jovens e se mudaram para outra localidade.
Gersino ainda não completara dezessete anos quando receberam uma visita que deu o pontapé na sua decisão de também deixar a vida na roça. Um homem que andava por aquelas bandas tirando retrato e vendendo quinquilharias convenceu-o de que a cidade ofereceria melhores condições de vida e prosperidade e prometeu ajudá-lo.
Ele ficou empolgado com a possibilidade de fazer a vida na cidade e foi embora, conhecendo o que era o mundo. Ficou como prisioneiro daquele homem, que não permitia que ele saísse, privando-o de liberdade, ameaçando-o com uma suposta responsabilidade lhe outorgada pelo seu pai. O homem obrigava-o a realizar serviços para saldar a dívida da viagem e da hospedagem, uma conta que nunca era quitada. Gersino levou tempo para se ver livre e, somente após aquele tempo, ele teve condições de retornar à casa dos pais, aproveitando um momento de distração do seu algoz e escapando pela janela. Nem sabia por onde andavam seus irmãos. Dos pais não teve mais notícias, mas agora estava de volta, disposto a refazer a sua vida e viver junto a eles, o que não teve oportunidade de fazer até àquela data. Jurou para si mesmo nunca mais abandoná-los.
Sonhava com o momento que chegaria à casa dos pais e seria recebido por eles, poder jogar-se aos seus braços, pedir perdão pela ambição e a cobiça e poder sentir o calor, o carinho, a segurança e o amor que somente a casa dos pais proporciona, pensou Gersino.
Seus passos no chão batido eram firmes, decididos e cheios de saudades. Diria à mãe e ao pai o quanto os amava. Como era bom poder voltar!
A certa distância, Gersino avistou a última curva e logo estaria em casa.
Aquela curva também testemunhara muitas das aventuras de Gersino, dos irmãos e dos primos que vinham visitá-los. Lembrou-se de quando vinham encontrar com o avô, que chegava no carro de bois, trazendo a colheita da lavoura. Quando ele voltava, os netos amontoavam-se no carro de bois e iam até àquela curva, voltando aos galopes e gritos, sendo recebidos pela mãe, que os esperava no alpendre. Dali também ela gritava por eles, à hora do almoço ou para tomarem banho. Era uma festa correr o dia todo, sem limite para as brincadeiras.
Bom mesmo era quando os primos apareciam. A casa ficava cheia e não havia uma árvore que ficava livre. Subiam em todas e a barulheira era tamanha que quando eles iam embora, o pai reclamava da imensidão da casa e do silêncio. A casa ficara estava surda, dizia ele.
Gersino passou pela curva e entrou numa reta escura, sombreada por árvores de frondosas copas de um lado e de outro, que impediam que os raios do sol penetrassem. Sentiam medo sempre que passavam ali à noite, quando voltavam da rua, lembrou.
Aquele último trecho que daria à casa dos pais deu mais força ao rapaz, que se pôs a andar mais depressa, a passos largos. Em pouco tempo avistou a casa, ainda distante. Era um casarão não muito grande, antigo, com o reboco soltando em vários pontos e o mato brotando no telhado denunciavam o tempo que não era reformada. As janelas e as portas estavam fechadas. Ninguém no quintal. Nenhuma galinha, cabrito ou outro animal andava pelo terreiro. Apenas um cão latiu, escondido debaixo de uma laranjeira, distante da casa.
Gersino observou o terreiro onde o pai secava o café, amontoava o milho e também eles aprontavam as brincadeiras, correndo de um lado a outro. Parou e veio-lhe à lembrança a casa aberta, um varal no alpendre, cheio de roupas, e eles brincando no terreiro, puxando uma carroça, às gargalhadas.
Ao redor do terreiro, laranjeiras, jabuticabeiras, goiabeiras. Tudo permanecia no mesmo lugar, intacto. Gersino aproximou-se, olhou a casa de frente, circulou e foi para os fundos. Subiu uns degraus de pedra, cobertos de lodo. Ouviu o barulho da água na bica, que continuava a desaguar. Sorriu! Subiu mais um pouco. A porta da cozinha também estava fechada. Foi à bica. Uma bica de bambu levava a água até à porta da cozinha, onde fora colocado o jirau onde as vasilhas eram colocadas para escorrer.
Dentro do caixote de madeira podre, uma panela de ferro e uma colher permaneciam debaixo da bica. A água caía na panela e derramava, desaguando por um rego, se espalhando pelo quintal. Dia e noite, incansavelmente!
Gersino acompanhou com o olhar o curso da água e avistou a corda amarrada num galho da jabuticabeira. A gangorra que o pai fizera, quando ainda eram pequenos, ainda permanecia ali, já apodrecida.
O rapaz retirou os óculos, colocou-os no bolso da camisa, aproximou-se da porta da cozinha. Reconheceu a tira de tecido que a mãe amarrara para puxar a porta quando saíssem. Era um retalho da sobra de um vestido que fizera para Catarina. Tocou levemente o tecido e empurrou a porta, quase adivinhando o que poderia encontrar lá dentro, ou não encontraria nada, nada mais poderia existir ali, pensou.
O silêncio era fúnebre.
Tão logo a porta foi aberta, a cozinha recebeu um facho de luz e Gersino pôde ver a prateleira e os pertences da mãe ainda no mesmo lugar. Algumas panelas na trempe do fogão a lenha, o tições, a peneira e o abano pendurados na parede, um banco de madeira e o tamborete onde dona Adelaide costumava sentar Catarina para lhe pentear os cabelos.
Gersino passou os dedos pela mesa de tábuas e percebeu que há tempo a poeira não era retirada, já estava acumulada.
Ele colocou a mochila sobre a mesa e foi para outro cômodo. O sol entrava pelas frestas do telhado e revela partículas de poeira que giravam no ar.
Ele abre a porta e entra no quarto dos pais. Vai à janela, abre-a e deixa entrar uma brisa leve. Pela janela avistou o forno de barro, construído debaixo da varanda, ao lado da casa, onde a mãe assava broas, biscoitos, leitões e outras iguarias que eles adoravam. Sentia um odor insuportável de sujeira, mofo e poeira. Ele olha a cama, o crucifixo pendurado à cabeceira, a lamparina sobre a cômoda, o guarda-roupa e uma bengala, que o avô usara. Na cama, uma colcha de retalhos e os travesseiros. Uma peça de roupa pendurada em um prego atrás da porta chamou-lhe a atenção. Era a roupa que a mãe usava para dormir. Ali ela pendurava a camisola.
Cada objeto estava vivo em sua memória e seus olhos buscavam cada detalhe, absorvendo tudo o que revia.
Gersino saiu dali e foi para o outro quarto, outro e outro, revendo os móveis e objetos encontrados, abrindo as janelas e deixando que o ar circulasse.
Por último, chegou à sala.
Passou direto e abriu a janela e a porta. Deixou o olhar ganhar o pomar, o pasto e o quintal. Voltou os olhos e sorriu ao ver a foto dos pais pendurada na parede. A mãe sorria. Aquela foto estava bem diferente. A pintura a óleo nunca demonstrava exatamente como as pessoas eram, havia muito exagero, pensou ele.
Gersino olhou a cristaleira com as louças que dona Adelaide guardava para servir às visitas. Agora poderia usá-las, era visita. Sorriu. Servido pela mãe, até numa cuia um mingau vira banquete, pensou.
Os olhos de Gersino se detiveram no assoalho. Uma parte estava diferente, marcada por uma enorme mancha que ele não conhecia. Seus olhos seguiram aquela mancha até encontrarem o banco, onde a mãe sempre costumava deitar.
Com as mãos no rosto, não pôde conter-se. As lágrimas explodiram de seus olhos ao ver a mãe ali deitada. Vestia o vestido de chita que os filhos lhe deram de presente num dia das mães. Estava deitada, na mesma posição, com as fotos dos filhos espalhadas pelo peito.
Os filhos se casaram e foram cuidar da própria vida. O caçula partiu, para também se realizar longe da roça. Os pais ficaram sozinhos, esperando que, de uma hora para outra, um deles retornasse. Inútil espera.
O pai deixa a mãe sozinha, ao partir para atender ao chamado de Deus. A solidão era imensa e os anos foram cruéis com dona Adelaide, não lhe devolvendo os filhos e ainda lhe tomando o marido. Alguns anos de espera foram suficientes para ela sentir o que lhe aconteceria.
Sentira saudades, estava só, queria alguém por perto e as fotos serviram-lhe de consolo. Assim ela partiu para uma vida onde, talvez, a solidão não existisse. Já não percebia nada mais, não ouvia, não via, não chorava nem sentia saudade, nem percebia a presença do filho que ali estava, ao seu lado, para revê-la, poder abraçá-la, disposto a confessar-lhe outra vez o seu amor.
Entretanto, Gersino estava de volta e, após quase duas décadas, ele reencontrou a mãe...